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26-01-2011 - Entrevista coletiva concedida pela Presidenta da República, Dilma Rousseff, aos jornais argentinos La Nación, Clarín e Página 12

Antes de sua visita à Argentina, no dia 31/01/2011, a presidenta Dilma Rousseff concedeu entrevista aos jornais argentinos La Nación, Clarín e Página 12

Palácio do Planalto, 26 de janeiro de 2011


Jornalista: Uma questão inicial – e isto foi dos três jornalistas – é o seguinte... Uma primeira coisa: essa história de que os dois países da América do Sul têm presidentas mulheres. Então, como é que a senhora vê o fato de tanto a Argentina como o Brasil serem presididos este ano por mulheres e (incompreensível) que são de fato os dois países  mais importantes da região?

 

Presidenta: Olha, eu acho uma coisa a ser comemorada, porque eu acho que os dois maiores países aqui, do Cone Sul, estão dando uma demonstração que as suas sociedades evoluíram no sentido de superar o tradicional preconceito que existia contra a mulher.

Veja que são sociedades que têm essa evolução no Sul, no Sul do mundo. E, para mim, é algo bastante significativo que também aqui nós tenhamos esse exemplo, que foi a eleição de um índio, na Bolívia, e de um metalúrgico antes de mim aqui, no Brasil. Então, eu acredito que a América Latina está dando um exemplo para o mundo de que certos preconceitos, certos bloqueios econômicos e sociais estão sendo superados. Eu acho que representa uma maior democratização das nossas sociedades e dos nossos países. E acredito que a presença da mulher aqui vai significar também a possibilidade de que em outros países da América Latina, como nós já tivemos, no Chile, a presidenta Bachelet, nós tenhamos também outros países em que uma mulher seja eleita.

 

Jornalista: Você tem muito... A senhora tem muito pouco tempo aqui no governo, mas do ponto de vista pessoal, como... A senhora acha que vai ter maior contato? Qual é o tipo de relação que você acha que vai ter com a presidenta Kirchner?

 

Presidenta: Olha, eu pretendo...

 

Jornalista: Quais são as expectativas?

 

Presidenta: Eu pretendo ter uma relação extremamente próxima com a presidenta Kirchner. Eu pretendo ter essa relação, primeiro, porque o Brasil e a Argentina, eu acho que são os países que têm responsabilidade, perante o conjunto da América Latina, de fazer com que a nossa região seja cada vez uma região com presença e ação no cenário internacional. O Brasil e a Argentina podem fazer isso, e podem fazê-lo de forma mais efetiva quanto mais nossas economias se articulem e se desenvolvam e criem laços em que ambos os povos ganhem com essa aproximação, em matéria de desenvolvimento econômico, de desenvolvimento tecnológico, de melhoria das condições de vida do povo brasileiro e argentino.

Agora, além disso, eu acho que nós temos uma proximidade facilitada pelo fato de sermos mulheres representando duas grandes economias da região. Nós temos essa responsabilidade também em relação a esse fato. E mais, acredito que essa presença do Brasil e da Argentina articulados com lideranças mulheres também vai nos permitir uma presença maior nos órgãos de articulação internacional. Aí eu vou listar para vocês o G-20; acho que vai ser muito importante essa liderança que a Argentina assumiu no G-77. Ela é uma liderança que... Eu vivi várias experiências em que – pelo menos uma eu queria destacar – na reunião do clima, por exemplo. O fato de que, no G-77, a Argentina tenha essa posição vai facilitar também a defesa dos interesses dos países do Sul, onde, nos organismos multilaterais, como foi a conferência do clima de Copenhague, na Dinamarca. Naquela época, a gente não tinha essa presença. Hoje, tendo, eu acho que, uma parte da visão de desenvolvimento sustentável aqui nesta região, vai estar expressa de forma mais efetiva.

Então, eu acredito também que a Unasul, essa relação entre o Brasil e a Argentina é muito importante na Unasul. Porque o Brasil tem um compromisso, que é um compromisso que nós estamos assumindo, eu acho, de forma muito forte, desde o governo anterior, do governo Lula. E agora eu vou dar continuidade, e aprofundar cada vez mais esse compromisso. O destino do Brasil tem de estar ligado, o desenvolvimento do Brasil e a melhoria das condições de vida do Brasil têm de estar ligados e compartilhados com o restante da nossa América. Daí, a importância do Mercosul e da Unasul. Em um mundo globalizado que deixou de ser basicamente um mundo com um polo ou dois polos no máximo, um mundo mais multilateral, ele exige a formação de blocos regionais. Daí porque, para mim, essa é uma relação estratégica.

Por isso, o primeiro país que eu vou visitar é a Argentina. Porque eu acho que é o país irmão do Brasil. Não estou diminuindo nenhum outro país, como o Uruguai, o Paraguai, a Colômbia, a Venezuela, o Peru. Mas eu quero dizer que é algo que eu acho até que é intuitivo, do ponto de vista político, para os outros países... É de todo importante que o Brasil e a Argentina estejam juntos. É algo, eu acho, extremamente amigável também para os outros países. Não é uma relação de hegemonia que o Brasil e a Argentina estão tendo em relação ao resto da América Latina. Não. É porque temos um tamanho e um desenvolvimento econômico que nós podemos liderar.

 

Jornalista: (incompreensível). Nem a senhora nem a presidenta Kirchner jogam futebol. Então...

 

Presidenta: Olha, nós não jogamos futebol, mas nós... eu tenho certeza de que a presidenta Kirchner é a favor do futebol feminino. É a favor, e vai dar força para o futebol feminino.

 

Jornalista: Presidenta, depois de quase um mês, qual é a experiência pessoal em exercer a Presidência, a diferença em relação a outras funções anteriores?

 

Presidenta: A responsabilidade é bastante maior, ou seja, sobre os meus ombros pesa a responsabilidade de dirigir um país da dimensão do Brasil, com os desafios que o Brasil tem. Eu venho de uma experiência de governo muito bem sucedida. Mas eu tenho clareza de que muito foi feito. Eu participei do outro governo de forma muito próxima do Presidente. Na verdade, eu vivia aqui em cima, mudei para o andar de baixo. Ao chegar no andar aqui, de baixo, você encara uma responsabilidade muito maior, porque a decisão, em última instância, está na sua mão.

O Brasil é um país que muito realizou, mas tem grandes desafios pela frente, e são desafios enormes porque os números no Brasil são sempre maiores, aqui, do ponto do conjunto da América Latina. Nós temos aqui, no Brasil, uma série de, eu diria, assim, para ti, de desafios colossais. Exemplo: nós queremos erradicar a miséria no Brasil. Miséria, no Brasil, se mede... Hoje nós temos ainda algo como em torno de uns 15 milhões de miseráveis no Brasil, nós temos de enfrentar esse problema. E não podemos deixar que o nível de vida dos demais, que ascenderam às classes médias... porque houve uma revolução nesses últimos oito anos, nós conseguimos tirar da pobreza e [fazer] chegar à classe média algo como 37, 38 milhões de brasileiros, se você contar até os dados não completamente fechados, de 2010.

Temos de continuar esse processo de elevação do nível de vida da população brasileira, portanto, temos de manter o nível, também, de crescimento econômico, para garantir emprego para todos os brasileiros que têm condições de trabalhar. Não é só o programa de transferência de renda, como o Bolsa Família, mas é a geração de milhões de empregos. Sem isso, um país como o Brasil não consegue fazer face aos seus desafios.

E nós temos um desafio educacional também. Nós temos de conseguir combinar não só uma melhoria radical na nossa educação, da qualidade da nossa educação, para as crianças e adolescentes, mas nós temos um grande desafio na profissionalização, porque hoje o Brasil tem um problema de quase pleno emprego.

 

Jornalista: Mas, ultimamente, também você sofreu alguns problemas muito importantes de infraestrutura: as enchentes no estado do Rio e também os problemas relacionados aos aeroportos no fim do ano passado, no governo Lula. São desafios para a Copa, os Jogos... a senhora acha que está correndo contra o tempo?

 

Presidenta: No governo a gente sempre corre contra o tempo, não é? Eu tenho corrido contra o tempo, contra quinhentos anos de abandono da população brasileira. A gente corre contra o tempo quando eu falo em reduzir a pobreza no Brasil.

Agora, no caso específico que você levantou, nos dois específicos, primeiro, nas enchentes, eu acho que no Brasil nós temos de caminhar e nós temos condições tecnológicas para isso. Nós temos condições de recursos humanos para isso, temos recursos financeiros para isso. Nós temos de caminhar para um sistema que não é que acabe com as enchentes, você vai ter sempre acidentes climáticos, mas que acabe e que elimine e que reduza ao mínimo o número de mortes. Então, desde um sistema de alerta de enchentes, passando portanto... de prevenção, todo um investimento em infraestrutura, que é a drenagem para não ter... para quando os rios encherem você não ter alagamento de residências, de empresas ou, se tiver, ter um nível de segurança, não deixando as pessoas morarem na beira dos rios e correrem risco de vida. A mesma coisa para a encosta de morro.

No Brasil, você entende porque isso aconteceu. Depois da crise da dívida, em 1982, nós tivemos um período muito grande sem grandes investimentos em infraestrutura e em projetos sociais. Por exemplo: nós não tivemos grandes planos habitacionais no Brasil. Então, a população não tinha acesso à moradia...

 

Jornalista: ...de qualidade...

 

Presidenta: Então... de qualidade, nem tinha acesso a nenhuma moradia. Então, ela fez a moradia dela através de mecanismos dela. Foi morar onde? Fundo de vale, onde era proibido e área de risco, fundo de vale, beira de córrego, encosta de morro. Isso é uma das partes do fenômeno. Outra parte é o problema da ocupação do solo urbano, é impossível você considerar que haverá segurança se você morar em lugares geologicamente inadequados para a vida humana. Então, precisa de uma ação conjunta entre as prefeituras, os estados e o governo federal, no sentido de coibir, também, de não autorizar, de não dar licença para moradias nessas condições. Tudo isso, nós estamos em um processo de construção. Eu acredito que, para o próximo ano, nós teremos, neste mesmo momento, um sistema de alarme, porque nós temos já ele montado, falta articular o conjunto desse sistema. Quando eu digo que a gente tem um montado, nós temos vários órgãos que fazem uma parte dele. Nós temos de articular todas as partes. Nós temos um razoável sistema de previsão de tempo; nós temos um certo controle, através de satélites, por exemplo, dos processos de desmatamento na Amazônia.

O que tem de ser feito no Brasil é você completar o levantamento das áreas de risco, aumentar o monitoramento, e nós temos, também, um razoável sistema de previsão, para o caso da agricultura. Mas vai ter de colocar nas áreas de risco pluviômetros, para ver... O clima, você prevê com 24 horas de antecedência; você não sabe se a chuva vai desmoronar ou não. Ela pode ou não pode. Mas, nesse caso, se alerta que pode. Agora, se vai ou não, depende do nível de chuva. Com 48 horas de antecedência, muita coisa você pode prevenir, avisar e retirar a população. Em vários lugares do mundo isso foi feito, não é? A gente sabe que, diante de terremoto e no caso, por exemplo, do tsunami, houve uma melhoria muito grande na gestão desses sistemas.

Nos aeroportos, nós iremos fazer uma Secretaria Nacional para Aeroportos, que vai tratar não só dos treze aeroportos da Copa, prioritariamente, mas do conjunto também.

 

Jornalista: Ah, não só...

 

Presidenta: Não só, não só deles.

 

Jornalista: Do conjunto.

 

Presidenta: Do conjunto, mas vai dar prioridade aos treze aeroportos.

 

Jornalista: Eu queria perguntar sobre esse assunto, Presidenta. Em algum momento a imprensa brasileira falou da possibilidade de que alguns aeroportos fossem concedidos para empresas privadas. Pode ser isso?

 

Presidenta: Você pode... Nós vamos considerar a possibilidade de várias hipóteses na gestão dos aeroportos, não há nenhuma das hipóteses que está bloqueada. O que nós vamos querer é garantir não só que haja investimentos adequados, mas, sobretudo, que haja gestão adequada de aeroportos no Brasil.

Para isso, você vai ter de combinar tanto uma gestão que... uma boa gestão, uma gestão de qualidade, uma gestão que, no nosso caso, por exemplo, contemple o que nós chamamos “nível 2 da Bovespa”, que é uma gestão transparente, da Infraero, como também uma parceria com o setor privado.

 

Jornalista: A senhora acha que... O Brasil vai estar muito exposto, nos próximos quatro ou seis anos. A senhora acha que vai ser uma boa imagem que o país vai dar ao mundo?

 

Presidenta: Eu tenho certeza que será uma ótima imagem. É uma imagem de um país que vem de um processo, eu acho assim, muito perverso, de ser um dos países mais desiguais do mundo, mudando esse perfil progressivamente, se transformando numa grande economia, uma grande economia emergente. E, ao mesmo tempo, um país que tem maturidade para resolver seus problemas.

 

Jornalista: Presidenta, a senhora sempre faz (incompreensível), pelo menos pelo que eu ouvi no seu discurso, quando a senhora ganhou as eleições, aqui em Brasília. Coloca um momento muito importante, a questão da institucionalização. O que eu queria precisar é o que isso significa, porque também não vê alguma coisa assim em relação não só ao Brasil, mas também em relação a organismos como o Mercosul, como a Unasul...checar mais a questão da institucionalidade. O que, na ideia da senhora, isso significa? E se isso...

 

Presidenta: Você podia contextualizar?

 

Jornalista: Sim. Eu lembro que a senhora, por exemplo, falou que para a senhora é muito importante cumprir os contratos. A senhora deu, colocou uma frase específica sobre esse assunto. Então, para mim isso foi como uma...

 

Presidenta: Eu te explico.

 

Jornalista: Sim, eu gostaria de saber o que representa.

 

Presidenta: É que eu falo de uma ótica, também, de quem cumpriu os contratos. Nós... Eu sempre digo “nós” porque eu participei do governo anterior, sei a experiência do governo anterior e eu acho que todas as coisas, todos os acertos do governo anterior eu vou manter. É fundamental cumprir contratos, para você ter um marco regulatório estável.

Nós, inclusive, tínhamos contratos com os quais a gente discordava dos termos dos contratos, mas mantemos os contratos porque isso implicava respeitar a institucionalidade do país. Hoje, muitos desses contratos estão vencendo agora e nós mudamos eles. A gente muda contrato depois que ele vence, a não ser que alguém queira negociar. Mas até agora eu te digo, o método mais eficaz foi mudá-los quando eles vencem.

 

Jornalista: Agora, eu pergunto isso porque na verdade, as experiências, por diferentes razões, diferentes países, mas as experiências que há na região nem sempre são muito focadas no cumprimento de alguns contratos, não?

 

Presidenta: Mas eu vou te dizer uma coisa: eu acho que cada país tem os seus problemas e tem as suas condições históricas e as suas explicações. No Brasil, nós tivemos um processo. Esse processo, ele levou anos amadurecendo. Obviamente, você tem conhecimento que os países mais estáveis do mundo como a Inglaterra, o Reino Unido... o Reino Unido quando acha que um contrato está desequilibrado, econômica e financeiramente, para o consumidor, chama uma audiência pública e muda os termos do contrato. Fizeram isso duas vezes no setor elétrico. Então, depende, cada país tem um processo de construção da institucionalidade diferente. A maturidade de alguns sistemas pode levar a que eles alterem as condições do contrato. Por que eles fizeram isso, se você pegar os contratos de energia elétrica do Reino Unido? Porque eles achavam que o ganho obtido pelos grandes produtores de energia era excessivo, que não era esse ganho de energia, de... ou seja, não era aquela lucratividade que o sistema comportava, então, naquele momento, eles tinham de diferir. O que eles tinham de fazer? Eles tinham de mudar as condições em que o contrato dizia que seriam passados para o setor dos consumidores os ganhos obtidos de produtividade. Eles inventaram, inclusive, na época, um fator chamado fator X, que pelo qual eles transferiam os ganhos de produtividade para o consumidor.

 

Jornalista: Qual o fator?

 

Presidenta: “X”. É, fator X. Se eu não me engano, isso deve ter sido... eu não lembro direito a data, mas foi nos anos 90, na segunda metade dos anos 90. E o Reino Unido foi o grande introdutor das agências regulatórias. Então, não é possível fazer de nada uma leitura linear. Eu dei o exemplo do Reino Unido porque lá eles são, vamos dizer, os pais das agências reguladoras. O Brasil tem uma situação completamente diferente. Nós mudamos, por lei – porque você muda, porque você pode mudar por lei – nós mudamos, por lei, o sistema. Nós fizemos uma reforma no setor elétrico.

Quando a gente descobriu o pré-sal tinha, no Brasil, uma regulação, que era sistema de concessão. Quando nós descobrimos o pré-sal, nós acabamos com essa regulação para o pré-sal, porque era um absurdo, e mudamos para o modelo de partilha, por lei. Fizemos um projeto de lei e falamos: “De hoje em diante, o petróleo que for descoberto lá embaixo é da União, mesmo quando ele chegar aqui em cima”. Pelo sistema de concessão, quando o petróleo saía na superfície, ele era de quem descobriu.

 

Jornalista - Argentina e Brasil enfrentaram problemas multilaterais. Há problemas de comércio, há problemas de acesso e há problemas cambiais também. Há atores com a China de um lado, os EUA, de outro. Como se posiciona o Brasil frente a esses temas?

 

Presidenta: Acho que o Brasil e a Argentina estão sofrendo – e todos os países emergentes, isso é público e notório – estão sofrendo as consequências da política de desvalorização praticada pelos países em questão, pelos dois grandes países do mundo. Acho que nossa posição no G-20 vai ter que ser cada vez mais uma posição de reação a esse fato, a essa política de desvalorização, que sempre levou a situações muito problemáticas no mundo, a chamada desvalorização competitiva. Eu desvalorizo a minha moeda para competir com você. Essa política levou a várias crises econômicas, aliás, a várias disputas políticas, disputas econômicas. E ela não é boa nem para o Brasil, nem para a Argentina, nem para nenhum país emergente.

Nós achamos que os Estados Unidos, em especial, que detém a moeda que é reserva de valor, tem de levar em consideração esse fato. Nós temos, hoje, 280 milhões [bilhões]... 88 milhões [bilhões] de dólares em reservas, em dólar. Então, para nós, também, é uma questão muito importante que não haja uma perda de valor. A perda de valor da moeda que é reserva de valor é uma contradição.

Achamos, também, que todos os países não podem aceitar políticas de dumping, mecanismos de competição inadequados, não baseados nas práticas mais transparentes, e que os países têm de reagir a esse fato. Agora, também sabemos que o protecionismo, no mundo, não leva a boa coisa. As perdas não são restritas àquele do qual você está se defendendo, elas se espalham pelo sistema, é isso que eu quero dizer.

 

Jornalista: É, mas as medidas que vem tomando o Banco Central, o Ministério da Economia, aqui, não dão resultado em relação ao dólar. Na Argentina, a gente tem muita preocupação, muita inquietude com respeito à desvalorização do Real. Não se pode afirmar que isso não vá acontecer?

 

Presidenta: Acho que, no mundo, ninguém pode afirmar isso. O que eu acho que nós temos conseguido, nos últimos tempos, é manter o dólar dentro de uma faixa de flutuação. E não teve nenhum, vamos dizer assim, nenhuma, entre aspas, nenhum “derretimento”. Ele oscilou entre 1,7, 1,6, 1,7, 1,6.

Agora, no mundo inteiro, ninguém pode dizer que consegue, não há uma... Por isso que os organismos multilaterais são tão importantes para se discutir essa questão. É imprescindível que haja uma responsabilidade dos países desenvolvidos nessa questão.

 

Jornalista: Sobre o tema, a senhora vai falar com o presidente Obama?

 

Presidenta: Olha, acho que eu vou falar com o presidente Obama várias questões. Eu ainda não estipulei um menu do que eu vou falar com ele. Isso será em março, não é?

 

Jornalista: Está confirmada a vinda do presidente Obama em março?

 

Presidenta: Os representantes do governo americano nos deram essa indicação, de que ele viria aqui no Brasil na semana de 14 a 19, dentro dessa semana. Nós ainda estamos numa fase de preparação da visita e de definição da própria agenda da visita e das atividades. Até agora, são só indicativas, as questões. É o mesmo processo de qualquer visita de qualquer governante. Tem uma parte, um momento em que é indicativo.

 

Jornalista: E falando nisso, eu gostaria de saber, e já passando um pouco para o lado argentino mais uma vez, qual seria a agenda que a senhora vai ter com a presidenta Cristina? Qual é o foco fundamental da agenda?

 

Presidenta: Olha, o foco da minha agenda é o seguinte: é o compromisso que o governo brasileiro mais uma vez assume, com o governo argentino, de uma política conjunta e estratégica de desenvolvimento da região. A gente, no caso da região, a posição é a seguinte: o desenvolvimento do Brasil, ele é um desenvolvimento que tem de beneficiar o conjunto da região. Dou um exemplo: nós vamos ter uma política muito forte para gerar uma política de fornecedores na área do pré-sal. Nós temos essa política, a gente chama “política de conteúdo nacional”. Nós cogitamos de uma política de conteúdo regional, conjunta, com a Argentina. Nós cogitamos de uma agenda em que a Argentina e o Brasil, do ponto de vista de serem países com grandes recursos alimentícios, com grandes recursos, eu diria, energéticos, possam aumentar a agregação de valor e a geração de emprego na região. Nós queremos uma parceria na área de tecnologia e de inovação, com a Argentina. Nós queremos também uma parceria no uso da tecnologia nuclear para fins pacíficos.

Jornalista: E isso está dentro da pauta?

 

Presidenta: Não, eu estou te falando... eu estou te dando um exemplo do foco. Eu vou focar na ideia fundamental de uma relação especial com a Argentina, estratégica, com a Argentina. A ideia-força é essa. Ela vai se manifestar em todas as áreas de interesse dos dois países, mas ela tem uma ideia-força. É a visão dessa relação.

 

Jornalista: Eu queria perguntar uma coisa... A senhora acha que a visita do presidente Obama aqui significa ou assinala uma virada de página nas últimas não tensões, mas sim nos últimos probleminhas que os dois países tiveram?

 

Presidenta: Olha, eu acho que a relação do Brasil com os Estados Unidos, ela é uma relação histórica. Nós temos uma relação – acho que os demais países da América Latina também têm – histórica com os Estados Unidos. Essa relação, na medida em que os países foram se desenvolvendo, elas foram mudando. Hoje, por exemplo, fantasticamente, os Estados Unidos são superavitários na relação comercial com o Brasil. Obviamente, isso era inconcebível, até pouco tempo atrás. Por quê? É importantíssimo olhar os Estados Unidos como um grande parceiro comercial dos países da América Latina. Para o Brasil, os Estados Unidos foram – e sempre serão – um parceiro muito importante. Então, nós, a cada vez... a cada período, nós temos de melhorar cada vez mais, e mudar o patamar da relação. Tivemos uma experiência muito boa nos últimos anos, tivemos diferenças de opinião, agora, o que importa é perceber que essa é uma parceria que tem um horizonte de desenvolvimento muito grande.

Então, nós consideramos que, a cada ano, nós vamos ter de virar as páginas do ano anterior.

 

Jornalista: Um dos assuntos que a senhora também destacou muito é a sua política de Direitos Humanos. Eu queria saber como vai se traduzir isso na sua política externa. Você pode por em contexto como vai ser tratado? A senhora falou já do caso do Irã, com respeito aos direitos humanos no Irã. O Brasil, a partir de agora, vai ter uma militância maior na política externa, do ponto de vista de Direitos Humanos?

 

Presidenta: Olha, nós, pelo menos eu acho... Em alguns momentos, eu até tive uma divergência pequena com o Itamaraty. Eu não vou negociar Direitos Humanos, ou seja, eu não vou fazer concessões nessa área. Agora, não acho que o problema dos Direitos Humanos possa ser olhado como restrito a um país ou uma região. Essa é uma falácia. Direitos Humanos hoje no mundo é algo que nós temos de olhar no nosso país e em todos os países, não dá para só ver a trava no olho do vizinho porque, no caso dos países desenvolvidos, nós já tivemos episódios terríveis, eu acho que tem problema de Direitos Humanos. Aliás, eu e o mundo, em Abu Ghraib. Acho que teve problemas de Direitos Humanos, e ainda tem, em Guantánamo. Agora, eu também considero que apedrejar uma mulher não é uma coisa adequada. Então, não vou, de maneira alguma, achar que não ser... que ter uma posição firme em relação a Direitos Humanos simplesmente é apontar com o dedo um país e falar: “Aquele ali é o país que não respeita”. É bom que cada um de nós olhemos, como a Bíblia diz, para a trava no seu próprio olho.

 

Jornalista: O apedrejamento é uma forma de pena de morte.

 

Presidenta: Como?

 

Jornalista: O apedrejamento é uma forma de pena de morte.

 

Presidenta: Eu sou contra. Eu sou contra.

 

Jornalista: E nesse contexto, o que a senhora acha do...

 

Presidenta: Eu sou contra, e mais, eu percebo que muitas vezes se utiliza os Direitos Humanos para fazer... não para proteger os Direitos Humanos, para se fazer política e para se usar os Direitos Humanos como instrumento político. Eu, em nome disso, não vou defender aqueles que são acusados e estão ferindo os Direitos Humanos, mas também não sou ingênua para não perceber que fazem isso.

 

Jornalista: Nesse contexto, o que a senhora acha da situação em Cuba?

 

Presidenta: Olha, eu acho que Cuba teve, com a libertação dos prisioneiros, deu um avanço, deu um passo na frente, nessa questão de Direitos Humanos, fez um esforço e tem uma melhoria. E acho que ela [Cuba] deve continuar fazendo. No processo, inclusive, de... eu acho que de construção da saída de Cuba, pelo menos porque você vê o governo cubano dizendo que vai fazer, que é uma melhoria nas condições econômicas, democráticas e políticas do país.

Agora, eu respeito também o tempo deles, respeito. Muitas vezes, a gente tem de entender o seguinte: que a política é feita em uma determinada temporalidade. Eu prefiro ali, em Cuba, eu prefiro dizer o seguinte: acho que há um processo de transformação, e acho que todos os países devem incentivar esse processo de transformação. E devemos protestar contra todas... Se houver alguma falha dos Direitos Humanos de Cuba, eu não vejo nenhum problema em falar: “Olha, está errado ali”, e tal; “Tem isso lá”. Qual é o problema? Podem fazer aqui no Brasil também. Nós não estamos dizendo que nós somos, aqui, um país que não tem suas dívidas com os Direitos Humanos. Nós temos.

 

Jornalista: Como falta muito pouco tempo, eu queria perguntar o seguinte, sobre a Unasul. A questão é esta: primeiro com o Mercosul.  (incompreensível) Isso vai exigir um esforço adicional do bloco, no sentido de incorporar mais um membro permanente, com todos os direitos e obrigações. Como é que a senhora vê esse processo da chegada da Venezuela?

 

Presidenta: Na Unasul ou no Mercosul?

 

Jornalista: Não, no Mercosul.

 

Presidenta: No Mercosul.

 

Jornalista: Sim. E a outra pergunta, essa é mais específica, é se existe alguma ideia conversada entre os presidentes de quem vai ser o próximo secretário-geral da Unasul.

 

Presidenta: Olha, eu acredito...

 

Jornalista: Duas distintas.

 

Presidenta: Então, a primeira é Mercosul.

 

Jornalista: Sim, sim, a primeira especificamente vai ser sobre a Venezuela no Mercosul.

 

Presidenta: Eu acho importante a Venezuela entrar no Mercosul, e acredito que, para o nosso bloco, é muito bom que haja vários países, além dos que originariamente estavam no Mercosul, entrem no Mercosul, porque muda, eu diria, muda o patamar do Mercosul. Você veja que a Venezuela é um grande produtor de petróleo e gás. Ela tem muito a ganhar entrando no Mercosul, e nós temos muito a ganhar com a presença da Venezuela no Mercosul. Então, eu vejo com excelentes olhos a entrada da Venezuela, a participação da Venezuela.

No caso específico da forma de governança dentro da Unasul, eu acho que está em um processo de negociação. Sempre que for possível se fazer rodízio, eu acho o rodízio um método muito bom, por quê? Porque nós estamos em uma reunião em que todos são iguais. É a tal da “távola-redonda”, não tem ninguém na ponta. Então, o rodízio é o mecanismo pelo qual nós vamos garantir que todos tenham a sua hora e a sua vez na direção. E a gente tem de respeitar a ida de cada país, porque ali é uma negociação entre países soberanos, Estados soberanos que querem juntar esforços no sentido de criar uma relação política, econômica e institucional que permita que a gente dê um salto para as nossas economias e a nossa sociedade. Nada mais justo que... cada um tenha a sua vez. Eu acho que isso é um princípio democrático, cada um... E um princípio democrático essencial entre países soberanos. Então, eu sou a favor disso, rodízio, tipo “távola-redonda”, ninguém é mais importante que ninguém. Cada país, um voto.

 

Jornalista: Então, muito obrigado.

 

Jornalista: Se a senhora me permite, com respeito a... duas perguntas muito fortes, muito pessoais, também da sua experiência no poder, pode ser?

 

Presidenta: Deixa... Você faz uma. Olha se eu vou fazer uma negociação no escuro! Faz uma, eu vou ver...

 

Jornalista: Neste primeiro mês, qual é, para a senhora, qual foi a surpresa mais positiva na sua vida pessoal aqui no Palácio, no Alvorada, o mais positivo e o mais negativo? Quais foram as surpresas? O que a senhora gostou mais e gostou menos?

 

Presidenta: Olha, eu estou na fase, ainda, eu estou na fase ainda da lua de mel.

 

Jornalista: Só positivo?

 

Presidenta: Sabe o que é?

 

Jornalista: Não, você pode dizer que a cama é muito dura.

 

Presidenta: Não... Eu posso te falar uma coisa, eu fiz uma brincadeira. Mas eu não tenho muitas surpresas aqui. Eu vivi no centro do governo nos últimos seis anos. Então, a minha grande surpresa positiva, eu vou te dizer: foi muito bonita a minha posse, muito emocionante. Nesse último primeiro mês, que começou no dia 1º de janeiro e que termina agora no dia 31, ele abre com uma cerimônia ao mesmo tempo muito bonita e triste, porque eu estava subindo, aqui a gente chama, a rampa, e o presidente Lula estava descendo. Então, ao mesmo tempo que era bonita porque eu estava chegando, era triste porque eu participei diariamente com o Presidente aqui no governo dele. Então, teve isso – foi muito bonito e muito triste. Agora, eu queria te dizer o seguinte: sempre é muito bom quando o teu povo te reconhece na rua, você entende? E o povo brasileiro é um povo muito afetivo, não é? E então, gritam; você está passando de janela aberta, gritam, te chamam. E é aquela intimidade, entendeu? É como se eu conhecesse cada um deles pessoalmente. Então, isso é muito bom.

Eu ainda não tive uma triste, viu. Vou ter. Talvez eu tenha tido sim uma triste, bem triste, te digo qual foi: foi olhar o... você não imagina o que era a cidade de Nova Friburgo. Sabe? Foi um momento muito triste, porque você via pessoas que estavam perdendo os seus parentes, o desespero nos olhos das pessoas. E, ao mesmo tempo, para mim é um compromisso que nós temos de impedir que isso ocorra outra vez.

 

Jornalista: Muito obrigado...

 

Ouça a íntegra da entrevista (46min03s) da Presidenta Dilma.